Meu pai era um sujeito sistemático. Um homem simples, mas de gostos restritos e peculiares. Vivia rascunhando cadernetas com cálculos básicos e poucas palavras com letra de forma. Nenhum nexo, para quem lesse. Mesmo na época das vacas magras, ele sempre teve um carro pelo qual nutria muito zelo: tapetes extras, pintura na cera, nenhum arranhão e coberto por uma capa cinza na garagem de casa, além do "somente da Volkswagen é bom!". Era nesses carros que fazíamos as viagens de férias, uma espécie de ritual familiar. O destino era sempre o Nordeste, visto que era a origem dele e da minha mãe. E aqui entra um de seus gostos que, para mim, fora o meu favorito: ele gostava de mapas. Mantinha nas gavetas de casa uma dezena deles. Era só uma rodovia mudar de nome que ele estava lá, na banca de um posto de gasolina. Nestas nossas viagens carros, que as vezes durava três dias de estrada, o banco da frente era uma espécie de copiloto na função de olhar o mapa e passar-lhes a coordenadas. Como minha mãe cochilava, ela era sempre rebaixada ao banco de trás. Eu fui pouco copiloto, pois além de passar coordenadas precisava fazer companhia ao motorista - meu pai - e eu era quieta demais para a missão, que ficava quase sempre com meu irmão.
Era sair de Goiás que vinha o bordão “daqui para frente é mais perigoso”. E em uma dessas, na fronteira do Tocantis com Maranhão, foi necessário irmos de balsa, uma espécie de barca gigante. Embora sério, inventava história para minha vó “ontem mesmo essa balsa afundou com um monte de gente”. O olhar preocupado dela gerava riso em nós! E quase o mesmo se aplicava ao passarmos pelas tribos indígenas em Grajaú do Maranhão, que dessa vez era ela quem inventava: eles invadem os carros, arrancam as pessoas e a roubam as joias - e era a minha vez de ficar preocupada, embora não tivéssemos joias!
E escrevo esse texto meio chorosa. Pois não mais almoçaremos juntos no Gaúcho, em Jaraguá-GO. Ou dormiremos num hotel de qualidade duvidosa em Babaçulândia-TO. Isso porque, há exatamente 10 anos, eu vivia o dia mais triste da minha vida: aquele em que você morreu.
E é estranho, para mim, imaginar que no passo que eu envelheça, maior será o tempo que vivi sem você do que com você. E eu vou me esquecendo dos detalhes, das histórias, das risadas. Me pergunto quantas rodovias novas não surgiram nesse tempo, enquanto os mapas lá de casa não mais aumentaram de volume.
Será que, a cada ano, me lembrarei menos de você? Esquecerei aos poucos as cidadezinhas com nomes engraçados que passamos? Me esquecerei do cair da noite que você desligava os faróis do carro para identificar as luzes da cidade de Imperatriz-MA?
É com alento que exibo no meu quarto, emoldurado, um dos seus mais antigos mapas, com uma linha traçando exatamente nossa última viagem - aquela que foi a maior de todas - com 07 estados brasileiros. Eu nunca imaginei que, aquelas vistas da serra do Ceará, seria nossa despedida.
E, se me serve de consolo, li do Murakami:
"(...)um mapa muito fiel acaba se tornando inútil por ser exageradamente fiel".
É por isso que, a cada ano, preencherei as curvas com minhas memórias. Eu jamais vou te esquecer, pai!